A burocracia que azeda nossa alimentação

Agricultores e organizações se unem para, junto ao governo, desburocratizar a regularização sanitária de alimentos da agricultura familiar e garantir o direito de escolha para a população

Nunca foi fácil o acesso democratizado ao mercado de produtos vindos da agricultura familiar. Além das exigências para que se enquadrem a um padrão que desconsidera suas formas peculiares de produção, o processo de regularização sanitária é complexo e com informações pouco difundidas. “O olhar da fiscalização, muitas vezes, é voltado apenas a estrutura dos estabelecimentos, em detrimento da qualidade do alimento produzido, o que prejudica produtores familiares que primam a qualidade, por trabalharem sem insumos químicos e com pequena escala de produção, o que diminui o risco de contaminação dos alimentos”, comenta Rodrigo Noleto, do ISPN, que vem acompanhando de perto essa questão.

Nesse sentido, agricultores familiares, agroextrativistas e organizações da sociedade civil que atuam no campo socioambiental vêm se reunindo para pensarem estratégias de diálogo com o poder público no intuito de desburocratizar os processos para regularizar a venda de produtos da agricultura familiar, especificamente os de origem animal, como mel, queijo e carne. Oficinas, reuniões com representantes do governo e troca de experiências estão dando bases para avançar nessa temática, que também significa um progresso para o consumo consciente da sociedade. Ao ter mais acesso a produtos que garantem a segurança alimentar e nutricional no dia a dia, a população amplia as opções de escolha, deixando de ser refém de produtos industrializados e com baixa contribuição para a saúde e o bem-estar.

Para entender essa situação, é necessário resgatar a trajetória da regulamentação sanitária de alimentos de origem animal no país.

 

Entenda a linha histórica da regularização sanitária brasileira:

Hoje, 18 de dezembro, a publicação da lei responsável pela inspeção industrial e sanitária dos produtos de origem animal no Brasil completa 68 anos (lei nº 1.283 de 18 de dezembro de 1950). A partir dela, foram estabelecidas normas para a fiscalização dos alimentos comercializados visando a qualidade e a segurança do consumo da sociedade – como a higiene dos estabelecimentos, o registro de rótulos e marcas, as penalidades por infrações cometidas, dentre outras. Esse seria um importante avanço para a segurança alimentar e nutricional da população brasileira, se não fosse o complexo controle que passou a afastar a produção familiar dos processos regulatórios. E não por estarem inadequadas, mas por suas realidades de produção diferenciadas não terem sido consideradas desde a elaboração da lei.

Confira nosso vídeo sobre a trajetória da regularização sanitária brasileira

Somente em 2010, 60 anos depois, a regulamentação de produtos de origem animal passou a considerar a agroindústria rural de pequeno porte. Porém, a definição do que seriam esses pequenos estabelecimentos só aconteceu cinco anos depois, em 2015. Antes disso, diversas alterações foram aplicadas à lei de 1950, inserindo os poderes municipais e estaduais nos processos regulatórios e destacando o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) como principal instância para a regulação da produção.

Mesmo com os avanços ocorridos nos últimos oito anos, a prática da fiscalização prosseguiu ditando impeditivos para a comercialização da produção agroextrativista. Muito porque as alterações sempre foram feitas sem diálogo com as populações rurais, permanecendo formas de fiscalização que, principalmente, priorizavam estruturas ao invés de modos tradicionais e qualificados de produção. “A legislação sanitária brasileira para alimentos é uma ‘colcha de retalhos’ que manteve a agricultura familiar e comunitária numa espécie de ‘limbo’, ou seja, marginalizando e criminalizando suas atividades, em benefício da indústria de alimentos ultraprocessados”, comenta Noleto.

Em junho desse ano, aconteceu a mais recente mudança na lei de 1950, que tentou retirar a responsabilidade da “fiscalização” de produtos “artesanais” do MAPA e destinar aos órgãos de saúde pública- lei 13.680/2018. Porém, a alteração de um único artigo da Lei de 1950, tornou-se inadequada e não cumpriu com seu objetivo. Outra modificação da nova lei foi a permissão para que produtos que alegam a condição de “artesanais” e tenham registro do estado ou do Distrito Federal (SIE) possam circular em todo território nacional, com a identificação de artesanal (Selo ARTE).

Mel de abelhas nativas é um dos produtos de origem animal da agricultura familiar

É importante destacar nesse novo movimento a introdução do termo “artesanal”, que, à primeira vista, poderia contribuir com a simplificação do acesso aos mercados da produção familiar, rural ou urbana. Porém, a lei ainda necessita ser regulamentada e, dependendo do processo de discussão e decisão nos órgãos governamentais, os produtores que mais necessitam de um processo simplificado podem sair prejudicados.

O conceito de “artesanal” não está claro na nova lei, o que tende a levar, mais uma vez, as práticas familiares a serem desconsideradas. Ou seja, um queijo “goumert” de uma grande indústria, muitas vezes denominado pelo mercado de artesanal, pode ser beneficiado com a lei, em razão do grande poder de influência e capital, enquanto o queijo das pequenas agroindústrias continuaria sofrendo com as burocracias. É importante que ambos os produtos acessem o mercado, mas que fique claro quem é quem, para que os processos regulatórios sejam adequados e aja transparência com os consumidores.

A questão da responsabilidade de fiscalização dos órgãos de regulação foi outro ponto questionável na nova lei, pois gerou mais dúvida, inclusive entre os órgãos governamentais. Assim, a lei que nasce nova, traz em seu conteúdo velhos hábitos: falta de diálogo com a sociedade e mais dificuldade para os setores da pequena agroindústria regularizarem seus produtos, gerando prejuízo à população. “A impressão é que fica cada vez mais complexo e com mais entraves. Antes tínhamos que nos referir ao MAPA e ter várias etapas, agora dizem que é com os órgãos de saúde, mas lá a informação também é pouco esclarecida e isso vem dificultando a venda do nosso mel”, desabafa agricultora familiar que prefere não se identificar.

Para sanar esses entraves regulatórios e beneficiar tanto as famílias agricultoras como a população em geral, é necessário mobilização e diálogos com o governo para garantir, enfim, a qualificação e democratização da regularização sanitária.

 

Dialogar com o poder público é o caminho

Oficina reuniu agricultores, organizações e representantes do governo

Em 29 de novembro, o ISPN realizou a oficina “Normas Sanitárias aplicadas à Lei de Produtos Artesanais para alimentos de Origem Animal”, em Brasília. Nela, agricultores familiares, organizações da sociedade civil e representantes do governo combinaram estratégias para dialogar com o poder público e desburocratizar os processos para regulamentar a venda de produtos do agroextrativismo e fazer a inclusão produtiva da agricultura familiar. O que norteou os debates foi última alteração feita na narrativa iniciada em 1950 – lei 13.680/2018.

A oficina veio para ajudar a conceituar o termo “artesanal”, refletir o papel do órgão responsável pela fiscalização a partir de agora e criar mecanismos para dar acessibilidade à essas informações para agricultores e agricultoras familiares. “As questões importantes são: a salvaguarda da sociobiodiversidade, do patrimônio agroalimentar e a inclusão socioprodutiva. Esses aspectos não podem ser dissociados da caracterização e conceituação de produtos artesanais”, pontuou o pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos, Fenelon Neto.

OUTROS PONTOS DESTACADOS PARA CONTRIBUIR COM A DEFINIÇÃO DE PRODUTOS ARTESANAIS:
– SÃO FEITOS COM “AS PRÓPRIAS MÃOS”, EM PROCESSOS HUMANIZADOS E SEM ADIÇÃO DE COMPOSTOS QUÍMICOS;
– SEUS PROCESSOS SÃO REALIZADOS A PARTIR DE CONHECIMENTOS COLETIVOS E TRANSMITIDOS DENTRO DA FAMÍLIA OU GRUPO SOCIAL;
– POSSUEM ASPECTOS RELACIONADOS AO TERRITÓRIO DE USO COMUM E COLETIVO;
– PARTICIPAM DE UMA CADEIA DE PRODUÇÃO DIVERSA, POIS, NA AGRICULTURA FAMILIAR, GERALMENTE SE TEM A PRODUÇÃO DE UMA GRANDE DIVERSIDADE DE PRODUTOS NUM MESMO TERRENO;
– SUA PRODUÇÃO VALORIZA O BEM-ESTAR ANIMAL.

No vídeo, o meliponicultor Antonio Ilson conta sobre a importância do mel de abelhas nativas para a segurança alimentar.

Durante a oficina, também foi colocada a importância em descentralizar o sistema. Para garantir mais clareza sobre quem é responsável pela fiscalização, é necessário que os processos sejam feitos de forma mais regionalizada, garantindo recursos e autonomia para os municípios e estados na realização do controle social. Ou seja, é preciso dar mais abertura para que as famílias agricultoras tenham facilidade em chegar aos órgãos responsáveis, e eles estarem em suas localidades facilita essa dinâmica.

A oficina saiu com Grupos de Trabalho (GT’s) para serem dados encaminhamentos às estratégias pensadas, uma delas, continua sendo o intenso debate com o poder público e a inclusão das famílias agricultoras nesse processo.

 

Outros passos na trajetória pela democratização da regularização sanitária

Regularizar para garantir o acesso à programas sociais

No dia 10, aconteceu a III reunião do Comitê Técnico de Regularização Sanitária para Compras Públicas da Agricultura familiar, criada pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), instalada no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), para facilitar o processo de compras públicas – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Se não forem democratizados os processos para a regularização dos produtos de origem animal da agricultura familiar, eles continuarão sem acessar os programas públicos, o que representa uma grave perda para a segurança alimentar e nutricional de crianças em fase de desenvolvimento e populações em situação de vulnerabilidade que necessitam de alimento saudável. “A agricultura familiar não está fornecendo pois não consegue regularizar seus produtos. O modelo imposto significa exclusão social e econômica de quem mais necessita do amparo da lei”, comenta Rodrigo Noleto.

Continuidade dos Trabalhos

Em 14 de dezembro, aconteceu a I reunião do GT criado durante a oficina de novembro composto pela CONTAG, Sebrae, Consea, ISPN, consultores e pesquisadores. A reunião focou na proposta de regulamentação da Lei 13680, apresentada pelo Sebrae e Contag. Foram discutidos os pontos que poderiam ser mais importantes para serem abordados na reunião realizada hoje no Mapa para discutir a regulamentação da Lei, data essa que marca os 68 anos de sua publicação.

Ceia de Natal com Segurança Alimentar

A inclusão produtiva dos alimentos vindos da agricultura familiar no mercado é um passo importante para garantir à população o acesso a produtos de qualidade e produzidos em diálogo e respeito à sociobiodiversidade. As festividades de final de ano são uma oportunidade para a sociedade repensar o que entra na sua mesa, considerando os conhecimentos sobre de onde vem e como foram produzido os alimentos que preencherão sua ceia. A segurança alimentar começa com a liberdade de escolha somada a conscientização sobre quem são os agentes rurais que proporcionam a diversidade produtiva de qualidade.