Exercendo seus modos de vida, povos indígenas alimentaram grande parte das escolas municipais de São Gabriel da Cachoeira (AM) neste ano. Considerando que a cidade é proporcionalmente a mais indígena do Brasil – mais de 90% dos moradores – não é de se espantar que a grande maioria das escolas da rede pública atenda estudantes indígenas.
Até pouco tempo, a alimentação escolar servia sardinha enlatada para crianças cercadas de pescados frescos de suas comunidades. Com a recente mudança no fornecimento de alimentos e protagonismo dos povos e comunidades tradicionais (PCTs), beiju, farinha, xibé, polpas de frutas e tantos outros alimentos comuns no dia a dia dos pequenos indígenas passaram a integrar sua dieta escolar no Amazonas.
O tema foi debatido na quarta-feira, 18, na mesa Diversidade no Prato: Como Viabilizar Alimentos de Povos e Comunidades Tradicionais no Programa de Alimentação Escolar (PNAE)?. A reunião de especialistas e representantes de povos indígenas, organizada pelo ISPN, fez parte da programação da terceira edição do Terra Madre Brasil 2020, que acontece até 22 de novembro pelo canal de Youtube da Slow Food Brasil. [Confira a programação completa].
Culturas fortalecidas e renda para as famílias
A participação de PCTAFs em políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma estratégia essencial para fortalecer as dinâmicas socioambientais, pois sustenta modos de vida tradicionais, protege a cultura imaterial e gera renda para as comunidades. No próprio PNAE, é previsto que 30% dos recursos sejam empregados na compra de produções de agricultores familiares, mas a medida quase nunca é cumprida por conta dos entraves burocráticos.
Em São Gabriel da Cachoeira, o segredo do sucesso foi a articulação entre diversas instituições e a publicação da Nota Técnica 01/2017/ADAF/SFA-AM/MPF-AM, que adequou as normas sanitárias exigidas pelo PNAE à realidade dos povos indígenas e logística do estado. O argumento se amparou no entendimento já existente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que facilita as normas para a produção de alimentos de origem animal e vegetal destinados ao consumo familiar.
O texto da NT foi elaborado coletivamente, com base em Nota Técnica da Funai e pareceres de órgãos vinculados à regularização sanitária, tanto estadual como federal, e contou com a participação de movimentos indígenas, organizações sociais e instituições públicas, no âmbito da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa). Para o coordenador do Programa Amazônia do ISPN, Rodrigo Noleto, entre povos e comunidades tradicionais, há uma dinâmica familiar da produção ao consumo nas escolas.
“Pais, tios e avós plantam nos roçados, parentes preparam os alimentos nas escolas, e seus filhos são os consumidores finais. Então, podemos considerar que esta produção, destinada à escola no próprio território, é consumo familiar ou autoconsumo”, fala Noleto.
O objetivo agora é estender a proposta para todos os povos e comunidades tradicionais no Brasil, com a publicação da Nota Técnica Nº 3/2020/6aCCR/MPF (clique aqui para baixar a nota técnica). São muitos os argumentos favoráveis: os produtos são naturais, a produção é local e sustentável, a alimentação é saudável, os alunos gostam e os pais fortalecem a geração de renda em casa, o que contribui também para a economia local.
Fernando Soave, Procurador do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF/AM) e Coordenador da Catrapoa, relata que já havia a ideia de expandir para comunidades tradicionais no Amazonas pois a realidade é muito similar, e que a proposta para estimular a replicação da experiência é realizar uma reunião por região do país, com as principais lideranças de povos e comunidades tradicionais, sociedade civil, secretários de educação e produção, promotores, procuradores. Destaca que a Catrapoa, que envolve diversas instituições, é finalista do Prêmio Innovare, o que contribui para divulgação da iniciativa.
Burocracia que azeda
Fernando Soave comenta que os alimentos inadequados servidos antes para as escolas – charque e suco em pó para comunidades que possuem fartura de peixes e frutas frescas – evidenciaram um problema que era imposto pelas dificuldades burocráticas.
O diretor do Departamento de Suprimento e Logística da Secretaria de Educação de Manaus (Semed), Leís Batista, explica como era antes: “Para o beneficiamento de alguns produtos, eles deviam passar por frigorífico e adquirir selo para voltar à comunidade. O custo da logística era maior do que o próprio alimento”, comenta. Isto não se difere da realidade de muitos cantos do país hoje.
O agricultor Cenaide Pastor Marques Lima, representante da Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira (AIETUM/SGC), relata que antes o fornecimento dos produtos não condizia com a realidade da comunidade. “Tinha que passar pela Anvisa, tinha que ter selo, tabela nutricional… É muito gratificante a Nota Técnica aqui para o estado do Amazonas”, compartilha.
A coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kerexu Yxapyry, da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, destaca que, além da burocracia descontextualizada da realidade dos povos, ainda existe a dificuldade com a língua, já que muitos indígenas não possuem facilidade com o português. Imagine entender as diversas documentações exigidas em uma língua que não é a sua? Algo não está certo.
Diversidade é soberania e segurança alimentar e nutricional
Polpas de açaí, buriti, cupuaçu, tucunaré e outros peixes, abacaxi, banana, macaxeira, farinha de mandioca e tapioca, goma e diversos outros produtos vindos das comunidades alimentaram cerca de 20 mil estudantes de escolas indígenas municipais e estaduais em mais de 20 municípios do Amazonas entre 2019 e 2020, beneficiando 350 agricultores de práticas sustentáveis. Durante a pandemia de Covid-19, o fornecimento às escolas se transformou em kits alimentares para as famílias. Isso aumentou as encomendas.
“A gente fica feliz em ver as crianças da nossa escola se alimentarem de produtos orgânicos e saudáveis, que são os alimentos do dia a dia deles. Isso incentivou bastante os produtores locais. Aqui, a gente trabalha com esperança e mais motivados. Esperamos que muitos outros agricultores possam participar também”, conta Florinda Orjuela, da Associação Indígena da Etnia Tuyuka, em São Gabriel da Cachoeira.
Segundo Fernando Soave, a prefeitura de São Gabriel compra 100% dos alimentos diretamente dos povos indígenas por meio de chamadas públicas. É diversidade, saúde, soberania e segurança alimentar e nutricional colocando o estado como referência no ciclo socioambiental.
Articular para colher os frutos
Articulações entre os povos e comunidades tradicionais, suas organizações e da sociedade civil, os gestores públicos municipais, estaduais e federais se mostram essenciais para que a iniciativa de sucesso seja replicada em todo o país e os entraves burocráticos sejam superados em prol da inclusão socioprodutiva. Foi esta a principal mensagem levantada durante as conclusões da mesa de debate Diversidade no prato.
Segundo o coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, João Guilherme Nunes Cruz, diálogos com movimentos e articulações indígenas, com a FUNAI e alguns governos de estado, como o do Maranhão, já se iniciaram. Ainda para Cruz, a realização da mesa de debate no Terra Madre foi um sucesso por despertar nesses atores o interesse em saber mais e replicar a experiência do Amazonas utilizando a NT Nacional em suas realidades.
Pensar políticas mais acessíveis para a inclusão da produção sociobiodiversa é fortalecer o ato alimentar para além do importante viés da saúde. Este é também um movimento que dialoga com a ancestralidade e sabedoria dos povos. É a história e as identidades brasileiras presentes nas políticas públicas do país. “A alimentação traz a consagração do nosso corpo enquanto seres humanos e essa conexão com a divindade. Cada povo tem sua semente, cada povo tem sua forma de se alimentar. Alimento é saúde e espiritualidade”, explica Kerexu.
Acesse aqui a Cartilha “Alimentação Escolar e Povos e Comunidades Tradicionais”
PPP-ECOS e Alimentação Escolar
Conheça dois projetos apoiados pelo nosso Fundo para a promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), com financiamento do Fundo Amazônia, que comercializam junto ao PNAE: