Os Kisêdjê, povo indígena do Xingu, usa a sabedoria tradicional para beneficiar e comercializar um dos frutos mais famosos do Cerrado
Que tal uma galinhada caipira preparada com óleo de pequi vindo do Xingu? E se esse pequi vier da coleta de povos e comunidades tradicionais, como quilombolas, ribeirinhos e indígenas, que usam o fruto com sabedorias ancestrais? Fica bem mais gostoso! Esse delicioso hábito do dia a dia nos interiores do país agora chega com cada vez mais força às mesas dos centros urbanos.
Para acessar esses mercados, o alimento foi antes cultivado e manejado por um longo período, colhido, mas também higienizado, processado, embalado e etiquetado com rigor. Essas últimas etapas ocorrem nas agroindústrias da sociobiodiversidade, que são casas de processamento espalhadas Brasil afora, inclusive, na região conhecida como Amazônia legal, que alcança o Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do estado do Maranhão.
Esses espaços especiais são as agroindústrias, localizadas em áreas onde se desenvolve a agricultura familiar. Elas também estão em terras indígenas e das comunidades tradicionais. São ambientes que obedecem funcionamento e fluxo específicos, que devem operar conforme os marcos legais de órgãos federais e estaduais. Com estes protocolos, as comunidades podem comercializar e, assim, contribuir para gerar renda local, oferecer produtos de qualidade e sustentáveis para a sociedade.
Por meio da estratégia do ISPN para a Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), e com apoio do Fundo Amazônia, já foram apoiadas várias agroindústrias da sociobiodiversidade. Uma destas iniciativas é a da Associação do povo Indígena Kisêdjê (AIK), da Terra Indígena Wawi, localizada no Território Indígena do Xingu, na Amazônia Legal, também na região de Cerrado.
Com o apoio do PPP-ECOS, somados a recursos próprios e de parceiros, a associação previu a construção e a estruturação de sua agroindústria para beneficiar o famoso pequi. A agroindústria ainda não está na sua etapa de construção, mas seu projeto arquitetônico, conforme as regras da engenharia alimentar e sanitárias, já foi discutido e finalizado.
O Projeto Hwĩn Mbê
Hwĩn Mbê significa óleo de pequi na língua indígena Kisêdjê, e o Projeto que leva seu nome, contemplado pelo PPP-ECOS, pretende fortalecer e consolidar a cadeia produtiva do fruto como alternativa de geração de renda, promoção e garantia da soberania alimentar, associando-o ao fortalecimento de outras cadeias de produtos dos Kisêdjê, como a pimenta. O grupo ainda pretende qualificar o beneficiamento e expandir a comercialização do óleo e amêndoas de pequi.
Para os Kisêdjê, o pequi faz parte do dia a dia e de sua história. Esse é um fruto que, além de alimento, também é parte das dinâmicas culturais e sociais desse povo. Segundo o presidente da Associação do Povo Indígena Kisêdjê (AIK), Weratxi Kinsêdjê, o pequi é uma das salvações, inclusive, em momentos de pouco acesso à comida, e também instrumento para facilitar outras atividades da comunidade, como a pesca. “O pequi é uma cultura tradicional para a gente sobreviver, é muito bom para comer com beiju, e a gente consegue guardar ele por um ano o deixando no rio. Nos períodos de seca, o caroço também é aproveitado, deixamos no sol ou fogo, para ficar bem sequinho, e conseguimos comer nos períodos mais difíceis. Com seu óleo, também conseguimos usar no corpo para proteger de insetos durante a pescaria”.
Esse óleo também pode ser usado como hidratante corporal, como tintura, quando misturado com o urucum, além de ser peça chave em vários pratos da culinária. E o próprio fruto protagoniza pratos clássicos como a famosa galinhada com pequi, já conhecida nacionalmente. E é essa riqueza da sociobiodiversidade que os Kisêdjê querem comercializar dentro do projeto que também vem fortalecendo as atividades para a conservação da natureza na região.
Dentro do apoio conquistado junto ao PPP-ECOS, os indígenas receberam o suporte de uma consultoria para a elaboração de todas as etapas necessárias, incluindo arquitetura, parte elétrica, dentre outras, para a estruturação da agroindústria local. “Foi um processo desafiador porque foi feito no contexto da pandemia, quando não se podia realizar visitas técnicas em terras indígenas, a primeira vez que fizemos totalmente on-line. Foram uma série de oito encontros, envolvendo diagnóstico compartilhado e participativo, e contando com uma parceria qualificada do ISA que aportou várias informações técnicas, o que tornou possivel o sucesso do processo”, contou a assessora técnica do ISPN, Isabella Braga.
Com a estrutura para a agroindústria montada e a sabedoria em usar e beneficiar o pequi de maneira sustentável, os Kisêdjê se organizam para comercializar em um futuro próximo muitos de seus produtos a nível nacional. É o gosto da tradição e do respeito ao meio ambiente adentrando novos mercados e outras dinâmicas, ensinando que é possível ter um consumo consciente e conectado com os modos de vida e a história de nossos povos.
Fotos: Rogério Assis / ISA